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Há 30 anos, talvez um pouquinho mais, o Santos Futebol Clube tinha aquele timaço acima de qualquer suspeita – seu currículo de conquistas já era tão extenso que nem caberia nesta página. Então, numa daquelas partidas contra um time sem expressão, em que o Santos sempre se empanturrava de fazer gols, a máquina emperra. O tempo vai passando, passando, e o placar teima em não sair do zero. Lula, o técnico do Santos, ia ficando cada vez mais aflito. Até que, faltando 15 minutos para o fim do jogo, ele cansa de esperar que seus craques resolvam a situação por conta própria e decide tomar uma providência gerencial. Olha para o banco de reservas e chama o atacante Pitico.
- Pitico, vem cá! É o seguinte: O Pelé ficou muito isolado ali na frente. Vai lá e encosta nele, para a gente ter mais opção de ataque.
- Falou, seu Lula.
- Além disso, nosso meio-de-campo está no maior bagaço. Você volta um pouquinho quando a gente estiver com a bola, para ajudar na armação.
- Certinho, seu Lula.
- Só mais uma coisa. O ponta-esquerda deles já matou o Carlos Alberto de tanto correr. Quando eles saírem jogando, você cai ali pela direita e fecha o espaço. Alguma dúvida?
– Só uma, seu Lula! Se o senhor acha que eu sou mesmo capaz de fazer tudo isso, por que é que eu ganho só três salários mínimos por mês?
Eu me lembrei dessa história na semana passada, quando vi um anúncio de emprego. A vaga era de gestor de atendimento interno, nome que agora se dá à seção de serviços gerais. E a empresa contratante exigia que os eventuais interessados possuíssem – sem contar a formação superior – liderança, criatividade, energia, ambição, conhecimentos de informática, fluência em inglês e, não bastasse tudo isso, ainda fossem hands on. Para o felizardo que conseguisse convencer o entrevistador de que possuía mesmo essa variada gama de habilidades, o salário era um assombro: 800 reais. Ou seja, um pitico.
Não que esse fosse algum exemplo absolutamente fora da realidade. Pelo contrário, ele é quase o paradigma dos anúncios de emprego atuais. A abundância de candidatos está permitindo que as empresas levantem, cada vez mais, a altura da barra que o postulante terá de saltar para ser admitido. E muitos, de fato, saltam. E se empolgam. E aí vêm as agruras da super qualificação, que é uma espécie do lado avesso do efeito pitico… Vamos supor que, após uma duríssima competição com outros candidatos tão bem preparados quanto ela, a Fabiana conseguisse ser admitida como gestora de atendimento interno. E um de seus primeiros clientes fosse o seu Borges, gerente da contabilidade.
- Fabiana, eu quero três cópias deste relatório.
- In a hurry!
- Saúde.
- Não, isso quer dizer “bem rapidinho”. É que eu tenho fluência em inglês. Aliás, desculpe perguntar, mas por que a empresa exige fluência em inglês se aqui só se fala português?
- E eu sei lá? Dá para você tirar logo as cópias?
- O senhor não prefere que eu digitalize o relatório? Porque eu tenho profundos conhecimentos de informática.
- Não, não. Cópias normais mesmo.
- Certo. Mas eu não poderia deixar de mencionar minha criatividade. Eu já comecei a desenvolver um projeto pessoal visando eliminar 30% das cópias que tiramos.
- Fabiana, desse jeito não vai dar!
- E eu não sei? Preciso urgentemente de uma auxiliar.
- Como assim?
- É que eu sou líder, e não tenho ninguém para liderar. E considero isso um desperdício do meu potencial energético.
- Olha, neste momento, eu só preciso das três cópias.
- Com certeza. Mas antes vamos discutir meu futuro…
- Futuro? Que futuro?
- É que eu sou ambiciosa. Já faz dois dias que eu estou aqui e ainda não aconteceu nada.
- Fabiana, eu estou aqui há 18 anos e também não me aconteceu nada!
- Sei. Mas o senhor é hands on?
- Hã?
- Hands on. Mão na massa.
- Claro que sou!
- Então o senhor mesmo tira as cópias. E agora com licença que eu vou sair por aí explorando minhas potencialidades. Foi o que me prometeram quando eu fui contratada.
Então, o mercado de trabalho está ficando dividido em duas facções. Uma cada vez maior é a dos que não conseguem boas vagas porque não têm as qualificações requeridas. E o outro grupo, pequeno, mas crescente, é o dos que são admitidos porque possuem todas as competências exigidas nos anúncios, mas não poderão usar nem metade delas, porque, no fundo, a função não precisava delas.
Alguém ponderará – com justa razão – que a empresa está de olho no longo prazo: sendo portador de tantos talentos, o funcionário poderá ir sendo preparado para assumir responsabilidades cada vez maiores.
Em uma empresa em que trabalhei, nós caímos nessa armadilha. Admitimos um montão de gente super qualificada. E as conversas ficaram de tão alto nível que um visitante desavisado que chegasse de repente confundiria nossa salinha do café com o auditório da Fundação Alfred Nobel. Até que um dia um grupo de marketing e finanças foi visitar uma de nossas fábricas. E, no meio da estrada, a van da empresa pifou. Como isso foi antes do advento do milagre do celular, o jeito era confiar no especialista, o Cleto, motorista da van. E aí todos descobriram que o Cleto falava inglês, tinha noções de informática e possuía energia e criatividade. Sem mencionar que estava fazendo pós-graduação. Só que não sabia nem abrir o capô.
Duas horas depois, quando o pessoal ainda estava tentando destrinchar o manual do proprietário, passou um sujeito de bicicleta. Para horror de todos, ele falava “nóis vai” e coisas do gênero. Mas, em 2 minutos, para espanto geral, botou a van para funcionar. Deram-lhe uns trocados, e ele foi embora feliz da vida.
Aquele ciclista anônimo era o protótipo do funcionário para quem as empresas modernas torcem o nariz, uma espécie de pitico contemporâneo. O que é capaz de resolver, mas não de impressionar.
Max Gehringer.
1 comentários:
"Lidere, siga... ou saia do caminho."
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